Artigos

Creio que os Portugueses não estarão conscientes do quão desprotegidos estão pelo Estado quando se encontrarem perante uma situação imponderável. Por todo o lado o Cidadão é confrontado com barreiras erguidas pelo Estado quando se torna necessária a resolução de um problema ou de uma situação crítica com que se depare.
O Estado bloqueia.
O Estado não auxilia.
O Estado não protege.
Constatei esta preocupante e kafkiana realidade da maneira mais brutal que se possa imaginar. Como se tratasse de um filme de suspense, onde o personagem, subitamente, se vê impotente perante um acontecimento que não controla e cuja resolução é impedida por uma entidade tutelar, pesada e focada para uma realidade única, que decorre idealmente sem incidentes.
O filme que aqui narro passou-se comigo. Poderia ter passado com qualquer um dos leitores. A vida tem destas curiosidades, é surpreendente e, geralmente, apanha-nos desprevenidos em situações para as quais não estamos preparados. Contamos com a entreajuda e o apoio da sociedade onde estamos integrados…
Um Cidadão (leia-se a minha pessoa) perde toda a sua documentação, desde o cartão de cidadão, aos cartões pessoais e da empresa de débito, crédito e matriz bancários, carta de condução e demais documentos legais de propriedade e outros do carro.
Estes foram dados como extraviados numa estação de serviço na A1, sentido N/S. A aventura teve o pouco auspicioso início, após a constatação da sua perda, com o não atendimento das várias tentativas de contactos telefónicos com a estação. Foi, então, obrigado a deslocar-se novamente àquele local, onde se confirmou o desaparecimento dos documentos. Apesar de solicitado, não foi permitido o acesso às imagens das câmaras de vigilância, devido à folga da pessoa responsável pelo equipamento.
Foi chamada a GNR para tomar conta da ocorrência, que entre um rol ininterrupto de perguntas repetidas, entendeu que não poderia aceitar a ocorrência, porque o Cidadão não pretendia apresentar queixa de furto, mas sim de perda de documentos. Assim, aconselharam a queixa fosse apresentada na sua zona de residência. Entretanto, o par de agentes obteve autorização para visualização das imagens gravadas pelas câmaras de vigilância, às quais somente se preocuparam com a do local onde o Cidadão havia estado sentado a uma mesa, ignorando, por exemplo, as imagens da entrada do estabelecimento e do percurso identificado pelo mesmo. O Cidadão perante as incongruências da acção da GNR, por exemplo, ao referirem que não haviam confirmado a sua presença nas imagens, pois não encontraram ninguém vestido como ele se apresentava no momento, o que foi esclarecido que na altura ele se encontrava vestido com um casaco. No entanto, não se preocuparam em proceder a nova visualização, e, também, a outras câmaras.
O Calvário do Cidadão ainda estava no início…
O sistema bancário, que pretende afastar os seus clientes dos balcões, forçando-os a uma operacionalidade por motu proprio por via digital, não possui uma resposta adequada à complexa situação do Cidadão que, repentinamente, se vê desapossado dos meios de acesso ao seu dinheiro que confiou à guarda do banco. Também, os serviços e aplicações digitais baseados nos cartões ficam inactivos. Assim, fica o Cidadão, de uma assentada, impedido de aceder ao seu dinheiro. E, se não tiver como proceder ao pagamento, por exemplo, de um serviço de transporte privado ou público, pois estando impedido legalmente de conduzir por não ter consigo a licença de condução, bem como toda a documentação do carro.
Já na esquadra da RDP, o agente da recepção declara ao Cidadão que este não pode andar sem estar identificado, ou de conduzir sem a respectiva licença, mesmo que este solicite uma solução para uma constatação tão óbvia como a que apresenta…esta não é fornecida. Foi, portanto, uma constatação do óbvio e que em nada contribui para a solução do problema.
No entanto, a declaração foi redigida em papel e devidamente assinada e carimbada.
A saga continua no Espaço do Cidadão, onde este é aconselhado sobre os passos necessários para a obtenção de segunda via de toda a documentação extraviada, devendo ser o Cartão de Cidadão o primeiro documento a ser processado, e com este, após um período de duas semanas (se for solicitado o serviço de urgência o custo aumenta exponencialmente).
Há no entanto, uma situação que não se encontra acautelada neste processo angustiante. O Cidadão, ao cancelar os seus cartões bancários e da matriz, fica impedido de aceder à sua conta bancária, onde se encontra o seu dinheiro. Está portanto, impossibilitado de pagar qualquer serviço ou compra, por mais comezinha que seja, como por exemplo, dirigir-se ao balcão do seu banco, pois não podendo conduzir pelas razões óbvias, não poderá levantar dinheiro numa caixa de multibanco, transacionar qualquer operação comercial por via do MBWay ou da própria aplicação do banco… Assim, só lhe resta regressar aos costumes medievais de se deslocar a pé até ao seu banco que fica a dezenas de quilómetros da sua residência.
Quando, após concluído o processo de solicitação de novo Cartão de Cidadão, o Cidadão é confrontado com a nova barreira processual - o pagamento antecipado desse serviço, verifica, estupefacto, que a entidade, o Instituto de Registos e do Notariado, de modo intransigente e materialista, não conclui o processo, ficando este suspenso até ser pago… o Cidadão está, portanto, forçado a viver no Limbo.
Fica, até ao momento, a única postura digna de nota positiva dos membros da mesa de voto, onde o Cidadão pôde cumprir o seu dever cívico, e que perante a impossibilidade de apresentação do Cartão de Cidadão físico, não impediram um acto de Cidadania, confirmando a sua identidade por via da imagem arquivada no telemóvel.
A Moral desta patética estória resume-se ao facto que o Estado Português não respeita, causa dano, e não honra os seus deveres consagrados na Constituição da República Portuguesa, cujos "Princípios fundamentais, no Artigo 1.º, onde declara Portugal como uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária; no Artigo 2.º (…) um Estado de direito democrático, baseado no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais. São Tarefas fundamentais do Estado, segundo o Artigo 9.º, d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais."
O Estado Português tem o dever – a obrigação – de defender, proporcionar e acautelar todos os direitos e liberdades ao Cidadão, no seu bem-estar, conforto, livre circulação, acesso à sua propriedade e bens, pautando-se por uma postura irrepreensível de facultamento da rápida resolução de todas os problemas ou circunstâncias extraordinárias que impeçam ou bloqueiem estes direitos inalienáveis.
Inversamente, o Cidadão por todos os lados encontra-se cerceado e tolhido por um Estado que é intransigente, inflexível, difícil, obstrutor, oneroso, materialista, opressivo, injusto e, sobretudo, lesivo.
Também, o Estado dá mau exemplo aos servidores públicos, que assumem estas nefastas caraterísticas.
A improrrogável Reforma do Estado deve começar por implementar uma atitude mais em conformidade com as necessidades do Cidadão, e não do aparelho que o sustenta, concebendo e gerindo operações e serviços com uma missão mais humanizada e não mercantilista (o Estado é Servidor, não é Fornecedor), mais focado nas soluções e não permitir a paralisação perante o imponderável. Ser mais inteligente no uso dos seus recursos humanos e tecnológicos, e não numa deficiente e irracional utilização de meios.
Perante tal fatalidade o Cidadão deve contar com o Estado para uma rápida, eficiente, sensata e não despesista solução aos seus problemas e necessidades.
Só assim será feita uma eficaz Reforma do Estado.
É uma questão de Mentalidade e de Inteligência Racional e Emocional.
Kafkiano: Adjectivo que se refere a situações que são, ao mesmo tempo, complexas, confusas, angustiantes e opressivas.
João Micael
Presidente da Matriz Portuguesa – Associação para o Desenvolvimento da Cultura e do Conhecimento
Director da Academia de Protocolo
Vários
"Exklusiva", Março 2025